NUNCA-TERRA em vez de Peter Pan

Texto Miguel Castro Caldas
Encenação Bruno Bravo
Interpretação André Levy, Bruno Simões, Élvio Camacho, Peter Michael, Rafaela Santos, Raquel Dias, Sandra Faleiro
Música Sérgio Delgado
Cenário Stephane Alberto
Figurinos Chissangue Afonso
Desenho de luz Zé Manel Rodrigues
Design gráfico Tó Trips
Registo de vídeo Edgar Feldman
Assistência de produção Catarina Mascarenhas
Direcção de produção Mafalda Gouveia



Estreia Pequeno Auditório da Culturgest, 15 de Setembro de 2005
Reposição Teatro da Comuna - sala Novas Tendências, 7 de Julho de 2006

No comboio descendente
Mas que grande reinação!
Uns dormindo, outros com sono,
E outros nem sim nem não
Fernando Pessoa


Quem sou eu, quem és tu, não é questão. De onde para onde também não. O que interessa é que vamos. Mas vamos a dar a dar, ou vamos parados? As palavras voam, como o rapaz verde, e as pessoas abrem a boca para respirar, que remédio (se tiverem o nariz entupido), e às vezes saem suspiros, e outras vezes saem coisas, sapos, trapos. Às vezes fala-se tão depressa que parece o discurso do pouca-terra, pouca-terra. Pouca-terra, pca-trra pqtrr pqtrr pqtrr pqt Pqt pqt Pt pt.Pt.pt.Pt.pt.Pt

Lembro-me de ouvir o meu avô que era um velho agrónomo dizer que sentia que havia uma relação entre o pão e a guerra, e eu, que sou uma criança perante a imponência destas palavras, só me posso atrever a dizer que sinto que existe uma relação entre o pan e a terra. E daqui continuar (desculpem-me os literatos que não gostam de trocadilhos), que existe uma relação entre a guerra e a terra e entre o pan e o pão, e o panado, que é feito com pão ralado. E, já agora, disto tudo a relação mais óbvia: entre a terra e o pão. E tudo isto dito é o barulho do movimento de um comboio. As letras são as migalhas da engrenagem. Quando nos calamos as luzes apagam-se. Se voltamos a falar a luz volta a vir, e vemos que o som vem do escuro, como dizia o Beckett, e vemos que vai andando, e nós vamos lá dentro, pouca terra pouca terra, vendo a paisagem a passar pela janela. E para onde vá sou sempre eu a ir, eu que vejo a partir de mim dentro, sem outro remédio, como dizia o Borges, que vi num documentário da televisão a explicar como é que tinha ficado cego: ia a ler um livro policial no comboio, a forçar a vista, já via mal, e depois entrou num túnel, e à saída do túnel ficou a vista do Borges lá no escuro. E desde aí o túnel acompanhou-o, a qualquer parte que ele dentro dele tivesse que ir. Talvez que eu leve comigo o daqui prali se eu for daqui prali. E que traga o
prali se vier daí. Mesmo assim isto é longe do ser toda a gente e toda a parte do Álvaro de Campos. Não chega ao alentejano cortar os olhos (ou os alhos?) aos bocadinhos e espalhá-los pela terra para ter mais do que o seu corpo. O Alentejano, essa coisa que se chamou ao português que não tem terra nem pão. Alto, que este texto já se está a parecer uma cartilha qualquer que hoje irrita tanto os que mexem em tudo (mas os que hoje mexem são afinal os filhos dos que mexiam). Mas que hei-de fazer, se Pan parece tanto pão, parece tanta terra, mas terra do nunca, pão do que não cresce, tantas mães ocas, e piratas quem sabe generosos, e índios, os verdadeiros índios (que ainda havia no tempo em que foi escrito pelo J. M. Barrie, daqueles que iam atrás dos comboios nos filmes que se fizeram mais tarde), diria mesmo — se os literatos que não gostam de trocadilhos me deixassem — parece tanto o meu avô agrónomo, que já morreu, porque esta morte toda (to die will be an awfully big adventure) é a gente dizer que não quer crescer mais aqui dentro. Não chega a ninguém fazer o que quer que seja para ter mais do que o seu próprio corpo.
Miguel Castro Caldas

Pode ser que esta peça seja uma viagem de comboio porque as luzes assim o querem e lá vai a família — o pai, a mãe, os dois filhos (aquele que quer nascer e o que não quer) à procura da Terra do Nunca sem saberem que já lá chegaram porque a Terra do Nunca é, ela própria, o andamento do comboio. Pode ser que esta peça seja uma partitura — a partitura dos ossos das pernas que nos doem quando crescemos — em andamentos de comboio que nos separam da infância. E onde está ela, a infância? E quando crescemos o que é que cresce em nós? E neste comboio, que não é o de Barrie, pode ser que sejam eles a espreitar pelas janelas: O Peter Pan, o Gancho, a Wendy, o Smee, o casal Darling e os filhos mais a Nana e os índios.

Bruno Bravo